
Rafael Parente — PhD em educação pela NYU, diretor-executivo do Instituto Salto e pesquisador do NEES/UFAL. Foi secretário de Educação do DF
Alok, um dos DJs brasileiros mais reconhecidos no mundo, levou sua música ao Coachella, um dos maiores festivais do planeta. Ele vestia uma camiseta que dizia: Keep art human, um chamado para que a arte continue sendo expressão viva da humanidade. A frase simples ressoou como um manifesto: apesar dos avanços tecnológicos, a arte segue sendo um campo da experiência humana. Imperfeita, emotiva, imprevisível e, por isso mesmo, insubstituível.
Essa provocação me fez pensar no quanto a educação, como a arte, precisa preservar sua humanidade. Vivemos uma era em que a inteligência artificial, os algoritmos e as plataformas digitais avançam não só como ferramentas, mas como narrativas. Com elas, vêm a tentação de automatizar demais, quantificar tudo, substituir relações por sistemas e terceirizar o raciocínio. Se a escola sucumbir a essa lógica, pode reproduzir a violência que Paulo Freire denunciava: a redução das pessoas a objetos a serem ajustados.
Mas o que significa, afinal, desumanizar o ensino? É transformar o professor em operador de software, o aluno em número na planilha de desempenho. É tirar da sala de aula o tempo da escuta, da dúvida, do erro e do silêncio criativo. É esquecer que aprender é a arte do encontro, da emoção e da presença, e que nenhum algoritmo compreende o tremor na voz de uma jovem que declama seu primeiro poema.
Já a educação que toca almas, como a defendida por bell hooks, reconhece e valoriza a complexidade e o talento de cada estudante. Importa-se com o outro e com a coletividade. Acolhe antes de avaliar. Ensina a pensar com empatia, e não só a responder com eficiência. Valoriza o vínculo, a criatividade, o pensamento crítico, a curiosidade e a imaginação.
Não se trata de rejeitar a tecnologia. Ela pode ser aliada na luta por equidade, automatizando tarefas, oferecendo ibilidade e apoiando quem mais precisa. A IA pode liberar o tempo do educador para que ele se concentre no que a máquina não faz: construir afetos, inspirar, transformar. Mas seu uso exige consciência crítica. Um tutor com IA só humaniza se complementar (não substituir) a interação humana. E se for desenhado com ética, responsabilidade, sensibilidade cultural e intencionalidade pedagógica por pessoas que entendem que algoritmos carregam visões de mundo, muitas vezes excludentes.
A pergunta central é: tecnologia para quê e para quem? Como garantir que inovações ampliem vozes silenciadas, e não aprofundem desigualdades? Como formar professores capazes de usar a IA não para controlar, mas para liberar tempo de escuta ativa e criação de vínculos? E como os estudantes podem desenvolver criticidade e consciência diante dessas transformações?
Essas decisões não são neutras. Manter a educação humana é, antes de mais nada, resistir à colonialidade dos algoritmos. Cabe a nós, educadores, estudantes, gestores, formuladores de políticas públicas e sociedade civil, definir caminhos. Que ferramentas adotar. Como formar os professores do futuro. Que valores priorizar. E que tipo de sala de aula queremos construir.
Volto, então, à imagem inicial. Assim como Alok transformou o palco em um ritual de resistência artística, a educação deve ser o lugar onde tecnologia e humanidade constroem futuros. Onde dados servem à dignidade, não à vigilância. Onde cada aula é um convite à desobediência criativa. Se a IA pode ajudar a escrever um texto quase perfeito, talvez o nosso superpoder na educação deva ser o de cultivar o imperfeito, a incompletude, o que escapa à lógica, a subjetividade das relações. Como o que sentimos com uma conversa olho no olho e que nenhum app registra, ou a firmeza afetiva de uma educadora como Gina Vieira, que nos ensina: "A educação étnico-racial precisa ampliar a nossa forma de pensar, abrindo caminhos para ar outros saberes — saberes que nos permitem, inclusive, sonhar novos futuros".
Talvez seja esse o papel mais crítico da educação hoje: ensinar que viver é uma experiência irrepetível, como o choro emocionado de Lady Gaga diante de mais de 2 milhões de pessoas em Copacabana, em um daqueles momentos que só a presença humana é capaz de criar. Nossa humanidade e nossa potência não cabem em linhas de código. E mostrar que existir, com tudo o que aprendemos, sentimos e sonhamos, é o que nos torna únicos em um mundo que caminha para a homogeneização em padrões.
Esse é o ritmo que não pode parar.
#KeepEducationHuman (ou, em bom português: #EducaçãoComAlma).
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