
JOÃO CARLOS SOUTO, professor de direito constitucional, mestre e doutor em direito, procurador da Fazenda Pública
Jorge Amado, baiano de Itabuna, nascido em 1912, é autor de algumas das mais importantes páginas da literatura brasileira. São de sua autoria Capitães da areia, sua primeira obra de sucesso, escrita em 1937 e que se estima já vendeu mais de 5 milhões de exemplares. Juntam-se a ela Terras do sem fim (1943), Gabriela, cravo e canela (1958), Dona Flor e seus dois maridos (1966), Tenda dos milagres (1969), Tereza Batista cansada de guerra (1972) e Tieta do agreste (1977). Em 2001, o jornal Folha de São Paulo informou que o baiano já havia vendido aproximadamente 20,1 milhões de livros. Um quarto de século depois, dados que circulam na internet, um pouco mais atualizados, embora não sejam de fontes confiáveis, apontam para mais de 25,7 milhões de livros vendidos até 2024.
Jorge, que inclusive foi deputado federal na constituinte de 1946, é autor da proposta que resultou no artigo que ou a garantir a liberdade religiosa no Brasil, prevista na Constituição promulgada naquele ano e que se manteve nos textos democráticos posteriores, inclusive, por óbvio, no atual, de 1988. Ao lado de Paulo Coelho, é o escritor brasileiro com vendas expressivas no exterior e traduzido em 55 países e 49 idiomas.
Jorge Amado, que, entre outras premiações, recebeu o Prêmio Camões em 1994, a mais prestigiada honraria de países lusófonos, foi discriminado por parte da "elite" intelectual que o enxergava como um escritor regional e de poucos recursos. Regional de linguagem universal, como bem salientou o cineasta Bruno Barreto: "É um paradoxo, mas ele conseguiu transformar o regional em universal".
De Jorge Amado a Samir Xaud, médico nascido em Roraima, presidiu o Sindicato dos Médicos em seu estado e se elegeu presidente da Federação Roraimense de Futebol. Semana ada, apareceu como favorito a presidir a Confederação Brasileira de Futebol (CBF). O bastante para ser atacado de todas as formas, como indigno de presidir a entidade máxima do esporte das multidões. O movimento, de alguns jornalistas do Sul e Sudeste do país, fez parecer que Xaud deu aval à invasão russa à Ucrânia ou que, no ado, declarou paixão pelo golfe e que seu ídolo é Tiger Woods.
Juca Kfouri, conhecido colunista e autor de frases de efeito, disse que, "como se sabe, a contribuição de Roraima ao futebol brasileiro é da mesma relevância da das Ilhas Maldivas ao futebol mundial". De uma só tacada, ele ofende todos os estados do Norte, a esmagadora maioria do Nordeste, que, por essa lógica, estariam impedidos de presidir a CBF, por supostamente não terem contribuído com o futebol "vistoso" do Sul e do Sudeste.
Kfouri, nesse episódio, ergue-se majestosamente como Pio XI e sua encíclica Casti connubii, de 1930. Arvora-se em julgar quem contribuiu mais e quem pode pleitear a CBF. Pio XI estabeleceu regras de como os católicos deveriam se comportar na intimidade de quatro paredes; Kfouri fixa regras contributivas de um estado como pressuposto para presidir a mais importante instituição da paixão nacional. Não importa se o futuro presidente tem competência, tem experiência em gestão (e ele tem), não importa; importa se o Estado dele já contribuiu na conquista de alguma taça relevante.
A prevalecer esse entendimento, roraimense algum jamais poderá integrar a comitiva brasileira de surf em Olimpíadas, afinal de contas, Roraima (e alguns outros estados) não tem praia, não tem mar.
Voltando a Jorge Amado, o pesquisador literário Eduardo Assis Duarte afirmou certa feita que há um preconceito contra ele e o atribui ao "elitismo típico da universidade brasileira, que lê os autores que só ela lê". Para ele, "a elite acadêmica torce o nariz para qualquer escritor que venha a ter uma grande aceitação de público". Érico Veríssimo teria sido vítima de idêntico desprezo.
O preconceito contra Jorge Amado e a intolerância contra Samir Xaud me remetem ao episódio contado por Ozires Silva, que foi presidente da Petrobras, da Varig e ministro de Estado por duas vezes. Certa feita, no Programa Roda Viva, ele contou como abordou três membros do Comitê do Prêmio Nobel e os indagou a razão de o Brasil nunca ter ganhado um. A resposta de um deles: "Todos os candidatos brasileiros que apareceram, contrariamente aos dos outros países, em particular os Estados Unidos, quando aparece um candidato brasileiro, todo mundo joga pedra do Brasil. Não tem apoio da população. Parece que o brasileiro desconfia do outro ou tem ciúmes do outro, sei lá o que acontece."