Sociedade

Sarah Raíssa e o custo humano da sociedade da dopamina

A morte de Sarah não foi causada apenas por um desafio perigoso, mas por uma cultura que supervaloriza a aparência, a performance imediata e a satisfação rápida

.Casos como o de Sarah não podem se tornar apenas mais uma notícia esquecida em poucos dias -  (crédito: FREEPIK)
.Casos como o de Sarah não podem se tornar apenas mais uma notícia esquecida em poucos dias - (crédito: FREEPIK)

Lêda Gonçalvesdoutora em psicologia, professora do Programa Stricto Sensu da Universidade Católica de Brasília (UCB); Leandro Freitasdoutor em neurologia e neurociências, professor do Programa Stricto Sensu da UCB

Sarah Raíssa, uma criança de apenas 8 anos, morreu no último  dia 13, em Ceilândia, no Distrito Federal, após participar de um "desafio" viral de uma plataforma de vídeos curtos que consistia em inalar desodorante aerossol. Uma tragédia que não é isolada, mas é sintomática de um problema que vai muito além dos limites das redes sociais: a "sociedade da dopamina".

Dopamina é um neurotransmissor associado ao prazer, à recompensa rápida. Cada curtida, cada visualização, cada comentário nas redes sociais libera pequenas doses dessa substância no cérebro, criando um ciclo viciante que nos faz querer sempre mais estímulos. Para adultos, esse circuito já é difícil de controlar. Para crianças e adolescentes, cujo cérebro ainda está em desenvolvimento, torna-se ainda mais desafiador entender e resistir à sedução dessas gratificações imediatas, ficando presas num mecanismo que oferece aprovação rápida, fama instantânea, a ilusão viciante de serem vistas e "pertencidas".

A internet acentua a lógica do um "saber sintético", onde o conhecimento superficial é rápido e descartável, moldado pela lógica dos algoritmos e pelo imediatismo das plataformas digitais. A profundidade é substituída pela rapidez, a reflexão pela viralidade. Essa dinâmica digital explora justamente as fragilidades de um cérebro jovem, cujo córtex pré-frontal — região responsável por planejar, tomar decisões e medir consequências — ainda não está plenamente desenvolvido. O resultado é uma geração de crianças e adolescentes vulneráveis, com dificuldade de controlar impulsos e avaliar riscos, entregues ao consumo compulsivo de conteúdos que eles nem sempre conseguem compreender plenamente, mas que estimulam continuamente circuitos cerebrais ligados à recompensa imediata.

Precisamos de um debate urgente sobre o papel que as grandes empresas de tecnologia desempenham nesse contexto. Elas lucram bilhões com o tempo, a atenção e o engajamento das crianças e jovens, sabendo que seus algoritmos são projetados justamente para ativar áreas cerebrais associadas ao prazer instantâneo. Apesar disso, ainda são lentas e pouco eficazes em garantir ambientes seguros. Então, quem paga o preço por esse lucro exorbitante são crianças como Sarah. Será que elas deveriam ter o ir a esse mundo digital, repleto de riscos disfarçados de entretenimento? A morte de Sarah não foi causada apenas por um desafio perigoso, mas por uma cultura que supervaloriza a aparência, a performance imediata e a satisfação rápida. Uma sociedade onde sucesso é medido por "curtidas de desconhecidos" que, de maneira perigosa, alimentam temporariamente a liberação de dopamina no cérebro, e não pela qualidade das relações humanas ou pelo aprofundamento do saber.

Em meio a tudo isso, é possível vermos nossas crianças e adolescentes distantes da "caverna digital", reapropriando-se do brincar junto, ocupando as ruas, com pés descalços em contato com a terra, as árvores, os bichos, enfim, valorizar o saber orgânico capaz de semear e germinar encontros entre pessoas e destas com a natureza. Casos como o de Sarah não podem se tornar apenas mais uma notícia esquecida em poucos dias. Precisamos parar de fingir que essas tragédias são acidentes isolados e começar a responsabilizar quem lucra com esse sistema perverso, projetado para explorar sem pudor cérebros em formação, incapazes de perceber que nem toda recompensa vale o risco. Está na hora de decidir que tipo de sociedade queremos ser: uma que protege e educa nossas crianças ou uma que as sacrifica no altar do entretenimento fácil e viciante.

 

Por Opinião
postado em 21/04/2025 06:00
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