FAUNA SILVESTRE

Os influencers que ganham fama exibindo animais selvagens como pets

Levantamento feito pela BBC News Brasil identificou ao menos 175 multas do Ibama que citam nomes de redes sociais na descrição e a exploração da imagem de animais silvestres

Agenor Tupinambá diz que vive hoje com trabalhos na internet -  (crédito: Reprodução)
Agenor Tupinambá diz que vive hoje com trabalhos na internet - (crédito: Reprodução)

O influenciador digital Agenor Tupinambá, de 25 anos, ganhou a atenção do país, em 2023, quando o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) decidiu apreender uma capivara criada por ele como pet, a Filó.

A apreensão aconteceu à época porque, segundo o instituto, o animal estaria sendo exibido indevidamente nas redes sociais e criado em condições inadequadas.

Para o Ibama, ele "adquiriu seguidores expondo sistematicamente a fauna silvestre em seus perfis de forma irregular, sem licença ambiental para a atividade."

Tupinambá abriu um processo em que requereu a guarda da capivara, e ganhou. Filó continua com ele até hoje.

O juiz disse, na decisão, que o animal "vive em perfeita e respeitosa simbiose com a floresta" e que "não é a Filó que mora na casa de Agenor, é o autor (Agenor) que vive na floresta."

Advogados do influenciador apresentaram a tese de que ele "jamais buscou a fama", que "seus seguidores foram chegando aos poucos" e que a explosão de seguidores teria ocorrido depois de um vídeo viral com Filó, "gerando o efeito natural de ganhos de seguidores e engajamentos."

O caso catapultou Agenor para além das próprias redes sociais: deu entrevistas a programas de TV e chegou até a ter sua vida amorosa retratada em um texto na revista Caras.

Houve até mesmo a apresentação de um projeto de lei no ano ado, na Câmara dos Deputados, batizado com seu nome, que descriminaliza a posse e criação de animais silvestres não ameaçados de extinção. O projeto aguarda votação na Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável.

ados dois anos desde o episódio, Agenor Tupinambá alcançou a marca de 1,7 milhão de seguidores no Instagram e outros 1,8 milhão no TikTok, mais do que o dobro do número que tinha sido anotado na multa lavrada pelo Ibama, em 2023.

Quem visita a página dele hoje verá mais do que fotos com a capivara ou de sua vida privada.

Tupinambá trancou o curso de graduação em agronomia, se mudou para um sítio no interior do Amazonas e ou a trabalhar somente com internet. Levou Filó junto.

O influenciador diz que faz hoje publicidade de empresas locais e também que assinou contrato anual com um site de apostas.

Tupinambá contou à BBC News Brasil que recebeu algumas críticas depois de ter assinado o contrato (a entrevista pode ser lida aqui).

Ao lado da publicidade mais recente está outra foto, também destacada no feed, de Tupinambá e Filó, com o título "#tbt para matar a saudade de vcs". Ele afirma, no entanto, que não faz qualquer uso da capivara diretamente nos anúncios.

"Nunca ganhei nada em cima dela, do que eu postava com ela. Depois, meses depois que tudo aconteceu, foi aí que comecei a trabalhar com a internet", disse.

O influenciador Agenor Tupinambá na praia
Reprodução
Agenor Tupinambá diz que vive hoje com trabalhos na internet

'Mensagem equivocada' para a sociedade

O desfecho do caso da capivara Filó virou uma "mensagem equivocada" para o a sociedade e com repercussão até hoje nas redes sociais, nas palavras de um servidor do Ibama.

A cada nova apreensão de animal silvestre divulgada nas redes são centenas de comentários negativos recebidos.

São situações que envolvem, em geral, outros influenciadores digitais, que divulgam imagens de animais criados como pets, de forma considerada inadequada pelas autoridades.

Segundo a instituição, muitos lucram com essa exposição indevida.

Um levantamento feito pela BBC News Brasil identificou ao menos 175 autos de infração do Ibama que citam nomes de redes sociais na descrição da multa e a exploração da imagem de animais silvestres. Metade foi lavrada nos últimos cinco anos.

Um dispositivo legal de 2008 respalda as ações do órgão: segundo o decreto, é infração ambiental "explorar ou fazer uso comercial de imagem de animal silvestre mantido irregularmente em cativeiro ou em situação de abuso ou maus-tratos", o que pode levar a multas de até R$ 500 mil.

Imagem de macaco-prego adulto e de um filhote
Getty
Macaco-prego é alvo constante de tráfico de animais silvestres

'Isso gera curtida'

Para Bruno Campos Ramos, agente ambiental federal e chefe-substituto do Núcleo de Fiscalização da Fauna da Diretoria de Proteção Ambiental do Ibama, as redes sociais se tornaram uma nova fonte de lucro para fomentar o tráfico de animais.

"Quando algum desses influenciadores que tem animal silvestres faz sucesso, a gente até vê a alegria dos traficantes. É como se um artista estivesse divulgando um tênis, um carro. As pessoas assistem e querem ter um também", diz.

Ele lembrou de um episódio, também de repercussão nacional, em que a modelo e apresentadora Nicole Bahls, que tem quase 30 milhões de seguidores no Instagram, teve filhotes de macaco-prego apreendidos pelo Ibama depois de tê-los exibido nas redes sociais.

As autoridades descobriram, à época, que os documentos que comprovariam a legalidade dos animais eram falsos. O caso desencadeou depois uma operação sobre tráfico de animais silvestres no Rio.

"É uma cadeia em que várias pessoas ganham dinheiro. Tem o advogado, que entra na Justiça nas situações em que apreendemos os animais para conseguir devolução. Tem o influenciador, que ganha repercussão na internet e depois começa com patrocínio de bet [aposta] e monetização de views e curtidas", diz.

"Naquela época nós apreendemos muitos primatas. Ela [a modelo] teve a consciência de ir às redes sociais e falar que o Ibama fazia um trabalho excelente, coisa que nem sempre todo mundo faz."

Bahls chegou a dizer, em entrevista à TV Globo, que "não tinha consciência" de que o documento era falsificado.

"A maior lição que eu tive sobre animal silvestre, eu acho que mesmo sendo legalizado, não é legal. Porque incentiva e causa morte e muita dor no meio desses animais", disse.

Ramos, do Ibama, avalia que há uma incompreensão da sociedade sobre a ação do instituto.

"Recebemos uma crítica muito exacerbada. As pessoas acham que entendem do assunto. Esses não são animais para serem criados como pet."

Jaguatirica 'Pituca': servidores recebem ameaças

Jaguatirica é cuidada por servidores do Ibama
Ibama
Ibama diz que jaguatirica que estava com influenciadora apresentava quadro de desnutrição

Outro exemplo do cabo de guerra entre o Ibama e parte da opinião pública aconteceu em abril deste ano, quando a instituição apreendeu uma jaguatirica no interior do Pará, apelidada de Pituca.

O próprio Ibama divulgou vídeo no Instagram sobre o caso.

Com música ao fundo, uma porta-voz da instituição, Juliana Junqueira, diz que o animal tinha deficiência nutricional crônica, que a pelagem estava sem brilho e com lesões.

"A pessoa que se apossou do animal o exibia nas redes sociais como se tudo estivesse bem, mas a realidade era outra", escreveu o Ibama na publicação.

"Isso é maus tratos! Isso é tortura! Não curta histórias de animais silvestres nas redes. Atrás de um vídeo bonitinho existe uma história triste de maus-tratos", diz a instituição.

Em resposta, um dos primeiros comentários em destaque era de que "em momento algum" o animal era maltratado e que a jaguatirica "vivia solta e feliz com a sua dona".

Outra resposta em letras maiúsculas reafirma que o animal "vivia livre na fazenda, sumia nas matas e voltava quando queria. Agora ela está definhando em uma jaula no Ibama. Quem é que está causando maus tratos?", escreveu a usuária.

A jaguatirica chegou a um Centro de Triagem de Animais Silvestres, em abril, com o objetivo de, quando possível, ser reintroduzida à natureza "de forma segura", segundo o Ibama.

Os comentários negativos foram além das redes sociais. A BBC News Brasil teve o a uma ameaça por escrito, enviada a servidores do Ibama no Pará.

Um servidor contou à reportagem, sob condição de anonimato, que após a repercussão do caso nas redes houve uma "onda contínua de repúdio às ações do Ibama" e "ameaças de agressão física", inclusive nas páginas pessoais dos servidores.

"As pessoas têm relação tão grande com esses influencers que se acham amigos dessas pessoas. É um negócio calçado na emoção, não na razão", disse.

Ele disse que o órgão encaminhou as ameaças para investigação da Polícia Federal.

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'Ela não está sendo maltratada'

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A jaguatirica estava em posse de Luciene Candido, que se apresenta nas redes sociais como Luh da Roça. Ela tem mais de 200 mil seguidores no Instagram e quase 500 mil no Facebook.

Pituca era exibida em vídeos ao lado de outros animais e bebendo em uma mamadeira. Algumas publicações chegaram a quase 1 milhão de visualizações.

Em um dos vídeos publicados antes da apreensão, a influenciadora alegou que o animal podia se movimentar como quisesse na fazenda em que vive e que, caso fosse solta na natureza, não sobreviveria.

"Pessoal fica marcando autoridade nos meus vídeos, realmente eu não entendo. Ela não está sendo maltratada, não está ando fome, não vive em apartamento", disse.

"Acho que o desejo deles [que denunciam] é autoridade vir, recolher ela, levar para um cativeiro e aí depois de um certo tempo, 'ah, ela treinou, está pronta para ir para o habitat dela'. Aí chega no habitat dela simplesmente ela vai e morre. Possibilidade dela viver aqui em casa é de 20 anos. Lá no habitat dela, é 10. Quem fica questionando, criticando, nem sabe disso."

O analista ambiental do Ibama Roberto Cabral diz que há uma incompreensão sobre o que acontece após o resgate dos animais.

"Os centros de triagem [para onde os animais vão depois de apreendidos] não são o destino final do animal. É lá que eles serão recuperados, onde se faz uma reabilitação. É como se fosse um hospital. Transitório, para preparar o animal para viver em liberdade."

A jaguatirica foi encaminhada ao Centro de Triagem de Animais Silvestres, o Cetas. O instituto diz que o animal tinha problemas na pelagem e parasitas, "com destaque para infestação por bicho-de-pé nas patas" e "perda dos caninos do lado esquerdo."

Ela itiu, em um vídeo após a apreensão, saber que não tinha autorização para ficar com o animal.

"Estou agoniada, estou nervosa, estou triste. Infelizmente para quem estava torcendo contra, marcando as autoridades para vir busca a Pituca, vieram", lamentou ela em uma publicação após a apreensão.

"Tá certo que eu não tenho autorização, mas eu salvei a vida dela. Eu não fui na natureza caçar ela pra levar pra casa."

Candido também ou a divulgar uma série de vídeos críticos à apreensão, inclusive com uso de inteligência artificial, com ilustrações de autoridades prendendo o animal em uma jaula.

A reportagem fez diversas tentativas de entrevista com Luciene Candido por suas redes sociais, mas não obteve resposta. O espaço segue à disposição.

A Meta informou, em nota, que não permite "conteúdos que coordenem, ameacem, apoiem ou itam atos que causem danos físicos contra animais, e removemos tais conteúdos quando tomamos conhecimento deles em nossas plataformas."

Disse ainda: "Estamos sempre aprimorando esforços para manter as nossas plataformas seguras e também incentivamos as pessoas a denunciarem conteúdos e contas que acreditem violar nossas políticas através das ferramentas disponíveis dentro dos próprios aplicativos".

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Youtube: visualizações e lucro milionário

Imagem de uma pessoa dando banho em um macaco
Reprodução/Antonio Carvalho
'Monkey bathing': pesquisadores coletaram dados de cerca de 400 vídeos no Youtube, de 39 países, relacionados a animais silvestres

Um artigo científico publicado em 2023 na revista Biological Conservation analisou o fenômeno crescente do uso de animais silvestres nas redes sociais - e o consequente lucro para os criadores de conteúdo.

A pesquisa foi publicada em 2023 e assinada por Antônio F. Carvalho, Igor O. Morais e Thamyrys B. Souza.

Foram analisados cerca de 400 vídeos no Youtube, de 39 países. Os números mostram o grande interesse por esse tipo de conteúdo: somados, os vídeos tiveram quase 1 bilhão de visualizações e 8,5 milhões de curtidas.

Ao menos 114 vídeos foram monetizados por 155 anunciantes, e a média de lucro foi de US$ 10 mil dólares (cerca de R$ 56 mil). Crianças participaram de 61 produções.

Entre os vídeos identificados havia exemplos de crueldade explícita com animais.

No caso do Brasil, no entanto, os maus-tratos aparecem de forma mais 'velada', avalia o especialista em combate ao tráfico de animais silvestres da Wildlife Conservation Society (WCS) Brasil, Antonio Carvalho.

"Vimos muitos vídeos de animais na fila de matadouro e gente que comemora isso. No Brasil o que viraliza mais são vídeos de animais fofinhos, que aparentemente não demonstram algum tipo de crueldade. O caso da capivara Filó e da jaguatirica são as cerejas do bolo do que o brasileiro gosta de ver."

Para o especialista, o primeiro dano causado por esse tipo de conteúdo é o incentivo ao tráfico de animais silvestres. "Se o influencer está ficando famoso, indo para a televisão, quem assiste pensa em fazer a mesma coisa. Consequententemente, muitos outros animais começam a ser buscados, para atrair engajamento e entrar nesse círculo vicioso."

Embora não haja um sofrimento evidente nesses vídeos virais com animais silvestres criados como pets, ele avalia que há outros danos não mostrados.

"No caso da jaguatirica, que vimos recentemente, a questão nutricional estava muito abalada. Isso é recorrente. O animal, quando não está em vida livre, quando não está naquele nicho em que a espécie está adaptada, tem todo o sistema imunológico modificado. Quantidade de hormônios, de stress, tudo fica mais elevado."

Carvalho diz que a crítica recorrente ao Ibama acontece porque, à primeira vista, parece que estão tirando um animal doméstico de quem está cuidando, algo distante da realidade. "Os servidores, via de regra, dão a vida para resgatar esses animais."

O YouTube, em nota, disse que as diretrizes da comunidade "proíbem estritamente vídeos com maus-tratos a animais."

"É importante ressaltar que vídeos que violam essas diretrizes não são elegíveis para monetização. Se identificarmos uma violação, o vídeo é removido e o canal pode sofrer penalidades, incluindo a desativação da monetização. Investimos continuamente em tecnologia e equipes para aplicar essas políticas globalmente. Encorajamos nossa comunidade a denunciar qualquer conteúdo suspeito, e todas as denúncias são analisadas", diz a plataforma.

BBC
Luiz Fernando Toledo - Da BBC News Brasil
postado em 26/05/2025 13:51 / atualizado em 26/05/2025 14:08
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