
A partir de agora, a definição legal do que é ser mulher deve levar em conta o sexo biológico, e não o gênero. A decisão da Suprema Corte do Reino Unido instilou o pânico na comunidade de pessoas trans, na prática, a máxima instância do Judiciário britânico exclui as mulheres trans do conceito de "mulher" e abre brecha para consequências imprevisíveis para elas. "A decisão unânime deste Tribunal é que os termos 'mulher' e 'sexo', na Lei da Igualdade de 2010, se referem a uma mulher biológica e a um sexo biológico", decidiram os magistrados. O juiz Lord Hodge advertiu que a decisão da Corte não pode ser vista como um triunfo de um lado sobre o outro. Ele também frisou que a legislação concede às pessoas trans "proteção, não apenas contra discriminação por meio da característica protegida de redesignação de gênero, mas também contra a discriminação direta e indireta e contra assédio substancial em seu gênero adquirido".
A decisão da Suprema Corte se insere no marco de uma disputa judicial que se arrastava há sete anos entre o governo da Escócia, comprometida com os direitos trans, e a organização não governamental "For Women Scotland", que defendia a definição de mulher somente como sexo biológico. "Um homem que se identifica como mulher e recebe tratamento menos favorável (por causa de sua mudança de gênero) pode registrar uma queixa", declararam os juízes, segundo a agência de notícias -Presse. "Um homem que se identifica como mulher e recebe tratamento menos favorável, não porque é trans, mas porque se identifica como mulher, poderá denunciar discriminação direta com base no sexo", acrescentaram.
Diretora da TransActual, organização não governamental britânica que combate a transfobia e luta pelos direitos das pessoas trans, Jane Fae itiu ao Correio que a comunidade trans do Reino Unido está "absolutamente devastada". "Existe um senso de que juízes supostamente sábios e bem informados tomaram uma decisão que, de fato, exclui as pessoas trans do Reino Unido. Isso é tão fundamentalista quanto sério", desabafou. "Na manhã de hoje (16/4), algumas pessoas estavam em lágrimas, houve muito choro. A coisa horrível é saber que aqueles que fizeram campanha por essa decisão da Suprema Corte provavelmente estão alegres, porque muito disso é sobre crueldade. No fim das contas, essa situação visa machucar as pessoas, e elas estão em pânico com o que poderá vir a seguir."
Fae prevê uma batalha jurídica. "A decisão da Suprema Corte é inconsistente com a legislação anterior e será desafiada na Justiça. Levará anos, mas ela será revertida. Os direitos humanos não importam muito para o Reino Unido. Se a nação acredita que os direitos humanos são para todos, não para uma maioria, então precisa desfazer essa decisão", observou. A ativista considera também ilógica a ideia de sexo biológico. "É uma expressão legal quando usada por políticos britânicos ou por Donald Trump. Eles afirmam que se trata de 'bom senso'. Todos sabemos o que é o sexo biológico. O problema está no fato de ser necessário um teste para isso. Seria algo muito intrusivo: retirada de sangue, análises cromossômicas etc. Não existe um único teste capaz de delinear o homem biológico da mulher biológica", acrescentou. Ainda segundo Fae, depois da aprovação da Lei de Reconhecimento de Gênero, 20 anos atrás, muitas pessoas trans têm a certidão de nascimento com o termo "sexo não identificado".
Entre as entusiastas da decisão da Justiça, está J.K. Rowling. A autora de Harry Potter comemorou: "a Suprema Corte defendeu os direitos das mulheres e dos gays hoje (ontem)". Susan Smith, codiretora da "For Women Scotland", e outras integrantes da associação celebraram com champanhe do lado de fora do prédio. "Achávamos que os direitos das mulheres seriam revogados e, hoje, os juízes disseram o que sempre acreditamos: as mulheres estão protegidas por seu sexo biológico", disse Smith. "As mulheres agora podem se sentir seguras sabendo que os serviços e espaços designados para mulheres estão reservados para mulheres."
Em comunicado enviado ao Correio, Sacha Deshmukh, diretor executivo da Anistia Internacional no Reino Unido, classificou o resultado do julgamento na Suprema Corte como "claramente decepcionante". "Há consequências potencialmente preocupantes para pessoas trans, mas é importante enfatizar que o tribunal deixou claro que elas são protegidas pela Lei da Igualdade contra Discriminação e Assédio", observou. De acordo com ele, a Anistia Internacional interveio no caso, ao lembrar à Suprema Corte que "o reconhecimento legal do gênero é essencial para que as pessoas trans desfrutem de todo o espectro de direitos que lhes cabem, como à segurança, à saúde e à vida em família". Deshmukh exortou todas as autoridades públicas britânicas a aplicarem, de forma inequívoca, proteções para pessoas trans contra a discriminação e o assédio.
DUAS PERGUNTAS PARA...
JANE FAE, diretora da organização não governamental TransActual
Como a senhora analisa a decisão da Suprema Corte de reconhecer a mulher apenas como sexo biológico?
A decisão da Suprema Corte não tem sentido. Ela abre um buraco no que é conhecido como 'Lei de Reconhecimento de Gênero', um texto aprovado duas décadas atrás, o qual se apresentou como uma solução para o fato de mulheres trans e pessoas trans frequentemente processarem o governo por seu fracasso em defender os seus direitos humanos. O pedaço da legislação que deveria proteger os direitos humanos das pessoas trans foi mantido abaixo da linha d'água.
Isso poderia lançar as mulheres trans no limbo?
Depende do estilo de vida delas. Se elas saem, vão à discoteca ou fazem compras, isso cortará muito de seu estilo de vida. Historicamente, as mulheres britânicas foram mantidas em seu lugar pela falta de liberdade. È a mesma tática usada para excluir as pessoas trans da sociedade. As mulheres trans serão excluidas de seu espaço. Haverá pessoas que creem conhecer a lei e que tentarão implementá-la à sua maneira. Outras verão essa decisão como uma "luz verde". Nos EUA, a retórica encoraja a violência. Muitos se sentirão empoderados para para agredir as pessoas trans. (RC)