
O tão aguardado documentário sobre o Racionais MCs mostra como o quarteto mudou a forma como a juventude das periferias se vê e se expressa. Dirigido por Juliana Vicente, o filme apresenta a caminhada de Mano Brown, Ice Blue, Edi Rock e KL Jay desde o início, quando se conheceram na Estação São Bento, nos anos 1980, espaço da capital paulista essencial para a compreensão do hip-hop nacional. O grupo está entre os nomes consagrados da música brasileira.
Em 116 minutos, o filme "Racionais: das ruas de São Paulo pro mundo" (Netflix) apresenta questões e fatos que não dizem respeito apenas ao Racionais, mas a todo um contexto social, racial, cultural e econômico.
Acompanhar a saga protagonizada pelos “quatro pretos mais perigosos do Brasil” (como eles mesmo se intitulam, não por acaso) é acompanhar o desenvolvimento de uma narrativa de pessoas pobres, pretas e faveladas sobre si mesmas, sobre a construção de todo um universo simbólico que envolve a superação das mazelas provocadas pela escravidão, violência racial e exclusão social num país em que verdadeiro abismo separa pobres daqueles que têm o mínimo à educação e moradia dignas.
Duplas, o começo de tudo
O filme traz cenas de arquivo raras, como apresentações de Brown e Blue, Edi Rock e KL Jay, quando eram duplas separadas, antes do surgimento desse símbolo quase mitológico que são hoje. O documentário aborda o começo do processo que levou ao surgimento de clássicos como “Pânico na Zona Sul” e “Tempos difíceis”, primeiras gravações da banda recém-formada, na coletânea “Consciência Black Vol 1”.
Quando ouvi falar de Racionais pela primeira vez, devia ter 13 anos, e me impressionava quando encontrava pessoas que sabiam de cor letras complexas como a de “Pânico na Zona Sul”.
Havia uma postura, uma forma de declamar, que colocava jovens negros como eu num lugar diferente daquele a que estávamos acostumados, numa posição combativa e também de orgulho, algo raro naqueles tempos para a maioria de nós.
As discussões sobre consciência racial e orgulho negro circulavam basicamente dentro do Movimento Negro, formado por pessoas com o ao conhecimento, ainda que esse o fosse resultado de muitas lutas. Elas eram exceções. Muito antes de se dar conta disso, o Racionais fez com que essas questões chegassem à juventude muito distante daqueles espaços de discussão.
Quando fala sobre a responsabilidade colocada sobre o Racionais e sobre ele próprio, aos 19 anos, Brown comenta: “Eu não tinha nem chuveiro quente, como é que eu ia defender o povo?”.
O filme mostra cada período da trajetória do grupo por meio de seus seis discos – “Holocausto urbano” (1990), “Escolha seu caminho” (1992), “Raio X do Brasil” (1993), “Sobrevivendo no inferno” (1997), “Nada como um dia após o outro dia” (2002) e “Cores e valores” (2014). Ao final, a banda comemora 30 anos em imensos shows.
Cada período, demarcado pelos registros fonográficos, é habilmente explorado pela diretora, que apresenta o amadurecimento dos integrantes tanto no âmbito pessoal quanto artístico e coletivo, bem como os avanços e retrocessos da sociedade brasileira durante estas três décadas.
História do rap nacional
É importante frisar que a história do Racionais se confunde com a própria história do rap no país. Portanto, acompanhar o processo de crescimento do grupo é acompanhar o nascimento e o amadurecimento desse gênero musical, dado o grau de influência que os discos da banda tiveram sobre os MCs. Em maior ou menor grau, todos tinham e têm o Racionais como referência.
“Holocausto urbano” e “Escolha seu caminho”, os dois primeiros, são apontados por Brown como trabalhos que ficaram s a um círculo pequeno de ouvintes. A conexão com a favela e as pessoas de forma geral se deu com o terceiro álbum, o “Raio X do Brasil”, em 1993.
De fato. A música “Homem na estrada”, que sampleia “Ela partiu”, de Tim Maia, tocava em todas as principais FMs, atingindo tanto manos quanto playboys.
Naquele ano, lembro-me de ouvir mais pessoas do bairro falando sobre rap. Um vizinho do Beco das Antenas, no Jardim Alvorada, aqui em BH, comprou o LP. Nos reunimos na porta de sua casa, eu e mais dois amigos, Adriano e Reginaldo, ouvimos o disco inteiro em silêncio.
Era assim. Ouvir uma obra do Racionais pela primeira vez tinha ares de cerimônia, de ritual, da espiritualidade que KL Jay menciona no filme ao explicar o efeito que suas músicas têm sobre as pessoas.
Do desespero à esperança
Em “Sobrevivendo no inferno” (1997), trabalho considerado por muitos como o clássico maior da discografia do grupo, as falas e imagens remetem ao país violento, em convulsão. “Nada como um dia após outro dia” (2002) apresenta uma periferia esperançosa, com orgulho de si mesma.
Cada lançamento é tratado como um capítulo que demonstra como as músicas traduziram seu tempo e, mais que isso, ajudaram a moldá-lo. Destaco o papel que o Racionais teve ao tecer narrativas que não se limitaram a reportar sobre o tempo em que se vivia, mas contribuíram para mudar seus rumos.
A prova disso são os milhões de jovens que, apoiados naquelas histórias e exemplos, literalmente sobreviveram ao inferno e aprenderam sobre as próprias cores e os próprios valores.
Ter esta história registrada e compartilhada num espaço relevante, como a gigante do streaming Netflix, representa uma ruptura ao eternizar frases, faces e visões de mundo que, num país como o Brasil, foram silenciadas, violentadas e invisibilizadas desde que o primeiro navio negreiro aportou por aqui. Racionais no ar!
* Roger Deff é rapper em BH, mestre em artes pela Universidade do Estado de Minas Gerais (Uemg) e jornalista pela PUC Minas
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