
De dentro de uma cela, a confissão e o pacto selado. A cerimônia de batismo é simples e marca a entrada numa facção, ritual cada vez mais comum nos presídios. O recrutamento é apenas parte de um organograma extenso: começa com as alianças e a pela divisão de funções e pelo cumprimento de tarefas. Mas há também punições.
Protagonistas de esquemas milionários de tráfico de drogas e armas e lavagem de dinheiro, os "aliados" são monitorados 24 horas por forças de segurança — dentro e fora das cadeias. Enquanto tentam avançar de forma silenciosa no sistema carcerário, policiais especializados no combate às chamadas Orcrims (organizações criminosas) se apoiam em inteligência e no trabalho de campo para detê-los.
Na noite de sábado (24/5), Adamilton Rodrigues de Brito, que faz parte da liderança da facção local Comboio do Cão (CDC) e tem vínculo com a organização carioca Comando Vermelho (CV), foi preso no Guará, com duas armas de fogo. Além do porte ilegal de arma, o foragido foi preso em flagrante por falsidade ideológica e falsidade documetal. Com ele, foram encontrados um revólver calibre .357 Magnum, uma pistola calibre 9x19mm, 37 munições de 9x19mm e sete munições calibre .357.
Com uma extensa ficha criminal, Adamilton tem antecedentes por 10 homicídios, roubo com restrição de liberdade da vítima, porte ilegal de arma de fogo, uso de documentos falsos, entre outros crimes. Foragido desde 14 de janeiro, foi detido em operação conjunta da inteligência da Polícia Penal do DF com integrantes da Rondas Ostensivas Táticas Motorizadas (Rotam) e levado para a 1ª Delegacia de Polícia, na Asa Sul.
Mapeamento
O último relatório da Secretaria Nacional de Políticas Penais do Ministério da Justiça (Senappen), de 2024, mapeou 88 organizações criminosas nos últimos três anos, das quais mais de 90% têm estrutura hierárquica, poder financeiro, inimigos e estão presentes nas ruas e nas unidades prisionais. Na maioria dos casos, elas têm estatuto próprio e vínculo com aliados. O estudo mostra as fases de desenvolvimento e atuação em que as Orcrims se encontram. Isso envolve a expansão das operações, influência e relações.
Em todo o país, o mapa do crime organizado é extenso e fragmentado. Setenta e duas facções são locais, quando a atuação ocorre dentro do próprio estado de origem. Quatorze são "regionais", ou seja, estão em mais de um estado ou região, e duas têm atuação consolidada em quase todo o território nacional: o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho.
Essa disputa entre as principais facções também se reflete na capital federal. No DF, há presença ativa do PCC e do CV — rivais — além da organização local Comboio do Cão. Ao contrário do embate direto entre CV e PCC, o CDC mantém uma postura mais estratégica. Investigadores da Polícia Civil apontam que o grupo brasiliense busca negociar com ambas as facções, especialmente em acordos ligados ao tráfico de drogas.
Desde 2014, a Polícia Civil, por meio do Departamento de Combate à Corrupção e ao Crime Organizado (Decor), monitora de perto as organizações criminosas com atuação no DF. O coordenador do departamento, delegado Leonardo de Castro, explica: "Percebemos que só prender não era a solução, uma vez que eles aliciavam e batizavam outros para formar a célula".
Em 10 anos, de 2014 a 2024, a polícia prendeu 593 faccionados no DF: 452 do PCC e 141 do CDC. As prisões incluíram criminosos das mais diversas atribuições no grupo, como líderes, encarregados pelo núcleo financeiro, pela distribuição de drogas e advogados. Este ano, o Decor desencadeou as operações Chiusura e Concórdia, em março e abril, respectivamente.
Na primeira, o foco foi derrubar uma estrutura que operava na capital e em outros estados com o objetivo de assegurar o transporte de entorpecentes e a distribuição de drogas, além de lavagem de dinheiro. O traficante Thiago Gabriel Martins da Silva, líder do PCC, é suspeito de capitanear um dos núcleos investigados. Na operação Concórdia, foram cumpridos 14 mandados de prisão contra membros do PCC instalados na capital.
Estratégia
Além das prisões, as forças de segurança atuam de maneira estratégica. O foco é seguir o caminho do dinheiro e alcançar os núcleos financeiros dos grupos para desestabilizá-los. "O que buscamos é atingir o patrimônio, identificar possíveis 'laranjas', pontos de lavagem de dinheiro. A partir das provas colhidas em determinada operação, a análise delas, sejam documentos, sejam celulares, nos leva a outras revelações importantes", detalha o coordenador do Decor.
Segundo Castro, a negociação entre facções nacionais com o Comboio do Cão é uma realidade. A facção foi criada na própria capital, com maior número de integrantes e atuação em diferentes tipos de crime — o que garante maior capilaridade e influência local. O PCC tem tentado se instalar e criar raízes no DF, mesmo com os revezes impostos pela polícia. O CV, embora tenha aliados em Brasília, se concentra mais no Entorno.
A polícia identificou que o Comboio do Cão tenta criar e adotar um estatuto, um conjunto de regras internas que orientem o funcionamento da organização. O documento estabelece normas de conduta, hierarquia, deveres, punições e diretrizes estratégicas.
Atrás das grades
Nos presídios do DF, integrantes do PCC, CV e CDC somam cerca de 480 detentos, em um universo de mais de 15 mil presos, segundo dados obtidos pelo Correio. Cerca de 200 são do PCC, 200 do CDC e aproximadamente 80 do Comando Vermelho. O monitoramento no sistema carcerário é constante, uma vez que a atuação dos que estão detidos se estende ao batismo de novos membros e ao ree de informações e ordens a serem cumpridas do lado de fora.
Em operações, geralmente a polícia encontra e apreende bilhetes e manuscritos escondidos nas celas. As ações de enfrentamento das forças de segurança concentram-se no isolamento de lideranças, controle de visitantes, melhorias na estrutura, retirada de celulares e medidas de inteligência, com base no relatório da Senappen.
O secretário de Segurança Pública (SSP/DF), Sandro Avelar, avalia como a capital tem enfrentado o avanço e o crescimento das organizações criminosas. "Uma coisa que a gente pode falar com um grau bastante seguro é que, no DF, a gente tem feito um trabalho muito bom. Nossas corporações têm se antecipado e monitorado. Volto a agradecer aos policiais penais, que têm feito um grande trabalho no sentido de monitorar e obter informações. Os policiais penais do DF am informações para a Polícia Civil, para a Polícia Militar e para a Polícia Federal que permitem saber da movimentação dessas lideranças", frisa.
De acrodo com Avelar, que é presidente do Conselho dos Secretários de Segurança Pública (Consesp), os debates sobre o tema são frequentes, com o objetivo de buscar soluções para todos os estados. "Os secretários da região Norte, por exemplo, demonstravam uma preocupação com o Rio de Janeiro, que estava recebendo uma quantidade grande de lideranças para se esconderem nos morros cariocas. É essa troca de informações, sinceridade e seriedade no trato da segurança pública que temos buscado no Consesp."
Cinco perguntas para
Promotores do Núcleo de Controle e Fiscalização do Sistema Prisional (Nupri)
Como funciona a fiscalização do Nupri no monitoramento de integrantes faccionados nas unidades prisionais do DF?
O Nupri, no âmbito de suas atribuições, realiza a fiscalização do sistema penitenciário do Distrito Federal com base em informações de inteligência colhidas por órgãos especializados. Essas informações orientam a adoção de medidas preventivas ou repressivas, sempre dentro dos limites legais e com foco na preservação da ordem e da segurança no ambiente prisional, além dos direitos fundamentais dos custodiados. A atuação do Nupri não envolve o acompanhamento individualizado da execução penal de presos específicos. Ele atua de forma estratégica, orientado por critérios objetivos e institucionais, voltando-se à identificação e enfrentamento de problemas estruturais e sistêmicos, inclusive, no que se refere à contenção da atuação de organizações criminosas nas unidades prisionais.
Há alguma recomendação do Nupri para separar os faccionados por celas e blocos, ou eles ficam todos juntos?
Não há uma diretriz fixa do Nupri quanto à separação de presos faccionados em celas ou blocos distintos. A experiência de outros estados, como São Paulo e Rio de Janeiro, mostra que tanto a separação quanto a manutenção conjunta apresentam vantagens e desvantagens. A separação pode reduzir conflitos imediatos, mas pode fortalecer a estrutura interna das facções, caso não haja um monitoramento constante por parte da istração penitenciária. No Distrito Federal, a alocação dos internos é definida pela Vara de Execuções Penais (VEP), conforme critérios objetivos e istrativos de gestão penitenciária. No entanto, o Nupri pode intervir, sempre que necessário, para requerer a transferência de presos para alas específicas, como o Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), ou setores voltados à proteção da integridade física e psíquica do custodiado, com base no interesse público e na segurança do sistema.
Os promotores têm notado aumento de batismos e alianças nos presídios do DF? Como impedir o crescimento dessas facções?
O avanço do crime organizado é um fenômeno nacional. No Distrito Federal, percebe-se uma tentativa de avanço que vem sendo coibida pela pronta e efetiva atuação das forças de segurança. Para enfrentar esse cenário, o Ministério Público atua em diversas frentes: realiza inspeções periódicas nas unidades prisionais, propõe ações penais contra lideranças faccionadas, fiscaliza a atividade policial penal e fomenta políticas públicas voltadas à melhoria das condições carcerárias, com foco, inclusive, na prevenção da cooptação de novos membros.
Quais os principais desafios do MP no controle da atuação de faccionados em presídios?
Um dos maiores desafios é a dificuldade de isolar efetivamente os líderes de facções. Mesmo reclusos, muitos continuam a comandar atividades criminosas por meio de visitas, advogados ou comunicações clandestinas.
Há ações específicas do MP para impedir a ação de advogados em favor de faccionados presos?
A advocacia é uma função essencial à Justiça e deve ser exercida com independência e respeito às garantias constitucionais. No entanto, a tentativa de avanço das facções tem levado à cooptação de alguns profissionais que, desviando-se de sua missão, utilizam suas prerrogativas para facilitar a comunicação entre presos e o mundo externo. O Ministério Público acompanha investigações policiais e, quando há indícios suficientes, oferece denúncia contra esses advogados, além de comunicar à Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) para que adote as medidas disciplinares cabíveis.
Palavra de especialista
Mais investimento contra o crime organizado
Welliton Caixeta Maciel, pesquisador do Grupo Candango de Criminologia da Universidade de Brasília (GCCrim/UnB) e especialista em segurança pública.
Há alguns anos, temos observado a adaptação da criminalidade às oportunidades que parecem mais propícias para expansão do domínio e fortalecimento das facções criminosas; não mais focadas apenas no tráfico de drogas, cigarros e armas de fogo, mas, também, em venda de combustível, entre outras mercadorias ilícitas.
Trata-se da infiltração do crime organizado em setores de interesse do Estado, nessa longa disputa por território e poder, com uma certa conivência disfarçada de atores do crime e do próprio Estado.
Por exemplo: a escolha do setor de combustíveis por essas facções tem relação com a precariedade da fiscalização e com a potencialidade da ampliação da ramificação do crime organizado e sua interiorização pelo país por meio dos postos de combustíveis, além, é claro, do fornecimento de estrutura para lavagem de dinheiro e outros crimes, cooptação de membros e outros fatores.
O desbaratamento de esquemas em fraude em licitações e contratos públicos por facções da Região Sudeste fez com que elas buscassem mais domínios e, historicamente, esses esquemas tiveram e continuam tendo a participação de agentes públicos.
A situação é gravíssima, pois o fortalecimento dessas facções tem reflexos sérios dentro e fora do sistema prisional, na economia local dos territórios dominados e em toda a sociedade brasileira. Tentativas de sufocamento do domínio das facções criminais têm feito com que elas se reorganizem e repensem suas formas, meios, locais e âmbitos de atuação.
É imprescindível a atuação das instituições do sistema de Justiça no enfrentamento e no combate ao crime organizado, com investigações sérias pelas polícias, investimento pesado em tecnologias de inteligência, bem como no processamento e na punição de envolvidos nesse tipo de criminalidade.