Meio Ambiente

Até quando o Cerrado vai resistir? Especialistas alertam sobre riscos

Para especialistas, acreditar que o bioma sempre renascerá das cinzas é uma ideia que, a longo prazo, não se sustenta. Com o ar do tempo e com o aumento das agressões, a fauna e a flora ficam cada vez mais fragilizadas

Devido à sua vegetação, o Cerrado é propenso a sofrer queimadas naturais -  (crédito: Ed Alves/CB)
Devido à sua vegetação, o Cerrado é propenso a sofrer queimadas naturais - (crédito: Ed Alves/CB)

Maio marca o início da estação de seca no Distrito Federal, o que pode ser notado pela coloração amarelada das folhas das árvores, pela grama opaca, pelas emergências dos hospitais lotadas de casos de doenças respiratórias e pelos umidificadores ligados nos lares da capital. Ano ado, o DF viveu a pior seca da história, com 167 dias sem chuvas, ou seja, mais de cinco meses sem precipitações.

Mas depois que a chuva caiu e trouxe o verde de volta para a paisagem da capital, poucos se lembram do quão seca a vegetação esteve, por tanto tempo. Esse ciclo do bioma, embora belo, traz a preocupação de que, um dia, o Cerrado não volte a esverdear. Para a bióloga, escritora e ativista socioambiental Nurit Bensusan, olhar para os impactos das queimadas não é só ver o que o fogo queimou, mas as relações destruídas em meio às chamas.

"Precisamos entender que um bioma não é um conjunto de plantas e animais. É muito mais do que isso. É um conjunto de relações entre esses organismos. Essas relações têm a ver com a fertilidade do solo, que têm a ver com a polinização, que tem a ver com o controle de pragas e doenças, com a qualidade da água, com a disponibilidade da água, com a estabilidade climática", completou.

De acordo com a cientista, acreditar que o Cerrado sempre renascerá das cinzas é uma ideia que, a longo prazo, não se sustenta. "Qualquer organismo, qualquer ecossistema, tem alguma resiliência. Podemos pensar na asa de um avião, que é sustentada por centenas de parafusos. Se você tira um parafuso, a asa não cai. Dois, ou 10, e a asa não cai. Mas depois de um certo número, a asa colapsa", comparou.

Nurit ressalta que, com o ar do tempo e as agressões sofridas, o Cerrado se torna mais fragilizado. "Esses ataques, seja por fogo, por desmatamento ou seja por degradação, são muito frequentes. Se houvesse um tempo longo entre um evento e outro, tudo bem. A vegetação se recupera de pequenos incêndios naturais. Mas isso não é o que acontece", lamentou.

Como a seca ocorre todos os anos no DF, os preparativos para combater o fogo começam muito antes de as folhas secarem. O Instituto Brasília Ambiental (Ibram) faz o controle das áreas de risco de incêndio nas unidades de conservação e parques, por meio da Diretoria de Manejo Integrado do Fogo (DPCIF), vinculada à Superintendência de Unidades de Conservação, Biodiversidade e Água (SUCON).

"O Brasília Ambiental adota medidas como a construção de aceiros (técnica de retirada estratégica de vegetação que contorna uma área de risco) com uso do fogo, contratação de brigadistas florestais para ações preventivas, monitoramento, vigilância e combate direto aos incêndios. Neste momento, inclusive, um processo seletivo está em andamento para contratação de 150 profissionais para trabalhos na prevenção e combate aos incêndios", afirmou a assessoria do Ibram.

Ainda de acordo com o Instituto, após as queimadas, a recuperação de áreas atingidas pelo fogo ocorre de forma natural. "Em áreas degradadas, ou com fogo recorrente e intenso, é necessário adotar medidas de recuperação ativa, como o controle de espécies exóticas invasoras, revegetação com espécies presentes no local atingido e proteção contra novos incêndios", completou.

Verde Vivo

No fim de abril, o Governo do Distrito Federal (GDF) lançou a Operação Verde Vivo para reduzir e prevenir incêndios florestais. A ação é dividida em três partes, ao longo do ano: Fase de Preparação e Prevenção, com foco na capacitação das equipes e no planejamento; Fase de Combate, com posicionamento dos militares nos focos de incêndio; e Fase de Desmobilização/Avaliativa, na qual é feita a análise dos resultados da estratégia.

Com atuação conjunta dos governos local e federal, a operação terá o e de viaturas especializadas, brigadas florestais, aeronaves e ferramentas de georreferenciamento para o monitoramento das áreas mais suscetíveis às queimadas.

Animais 

Setembro do ano ado foi marcado por milhares de focos de incêndio no DF. Um deles, devastou quase metade da área da Floresta Nacional de Brasília. Essas queimadas não afetam apenas a vegetação: têm um impacto negativo na sobrevivência e conservação dos animais do Cerrado. Helga Correa, especialista de conservação do WWF- Brasil, ressalta que o bioma tem diversas espécies sob risco de extinção.

Incendio
O fogo não afeta apenas a vegetação: tem um impacto negativo na sobrevivência dos animais (foto: Ed Alves/CB)

"Segundo dados oficiais do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), temos mais de 242 espécies em ameaça de extinção. Comparado com o número total de espécies de vertebrados no Cerrado, isso chega a cerca de 7%", assinalou. "Pode não parecer um número grande, mas esse percentual está conectado a papéis muito importantes para a manutenção dos sistemas. Por isso é alarmante", destacou.

A especialista reforçou a importância de pensar nas espécies nacionais em risco de extinção que estão no Cerrado. "São cerca de 12% das espécies endêmicas do Brasil. Quer dizer que ocorrem somente no Brasil, que estão ameaçadas de extinção e ocorrem no Cerrado. Essas espécies, se desaparecem aqui, desaparecem do mundo inteiro. Sem elas, perdemos também uma história evolutiva e, além disso, muitas vezes, essas espécies são fundamentais no contexto das mudanças climáticas", alertou.

 

Palavra de especialista

O Cerrado, a seca e a crise climática

Por Mercedes Bustamante, professora do Departamento de Ecologia da Universidade de Brasília

O Cerrado, a vasta savana tropical do Brasil, é uma região de significância global em termos de biodiversidade. É de central importância para a provisão de água abastecendo diferentes importantes regiões hidrográficas brasileiras com uma contribuição que se expande além dos limites definidos para o bioma.

O ritmo e a evolução do Cerrado estão marcados pela alternância entre uma estação de chuvas e outra de seca. A estacionalidade moldou seus ecossistemas e suas espécies, os regimes de fogo e os modos de vida e a cultura de seus povos indígenas e comunidades tradicionais. A chegada da seca marca também as atividades da agricultura e da pecuária modernas, bem como a vida das cidades no coração do Brasil. Mudam os hábitos, os cuidados com a saúde e as paisagens.

No entanto, essa convivência antiga entre o Cerrado e a seca está ganhando um novo capítulo com consequências que já se manifestam e poderão se agravar: a crise climática. Um estudo científico, que analisou 700 anos de dados climáticos de estalagmites em Minas Gerais, revelou que a atual tendência de intensificação da seca começou na década de 1970, alinhando-se com o aumento da temperatura global e a expansão agrícola no Cerrado.

Os aumentos de temperaturas exacerbam a evaporação e reduzem a recarga de água subterrânea. A perda de vegetação nativa segue avançando pelos últimos grandes remanescentes de Cerrado em sua porção norte, na região conhecida como Matopiba (acrônimo que inclui os estados de Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia).

Dados recentemente divulgados pela iniciativa MapBiomas mostraram que, pelo segundo ano consecutivo, o Cerrado é o bioma com a maior área perdida de vegetação nativa. Em 2024, foram 652.197 hectares — mais da metade (52,5%) do total desmatado no Brasil. A região do Matopiba concentrou 75% da perda de vegetação nativa do Cerrado e cerca de 42% de toda a perda de no país.

Embora os números representem uma queda de 40% em relação a 2023, o patamar de perda de vegetação segue alto e os quatro estados do Matopiba estão entre as cinco unidades federativas que mais desmataram em 2024.

O avanço da perda de vegetação nativa representa uma dupla ameaça. O Cerrado já perdeu mais de 50% de sua vegetação nativa para o agronegócio, principalmente para a soja e a pecuária. As mudanças de uso da terra no bioma já o tornaram mais quente e mais seco, como constaram diferentes estudos em anos recentes.

Os ecossistemas naturais de raízes profundas são cruciais para a retenção de água. A mudança de vegetação reduz a evapotranspiração, um processo fundamental para a precipitação regional, e já diminuiu o fluxo dos rios em 8,7%, em média. As projeções sugerem uma queda de 34% nas vazões dos rios, até 2050, se a perda de vegetação nativa continuar, ameaçando o abastecimento de água para 90% dos brasileiros, que dependem da energia hidrelétrica proveniente do Cerrado.

A biodiversidade única do bioma, incluindo espécies criticamente ameaçadas de extinção, está em risco, pois as condições mais quentes e secas reduzem a formação de orvalho, uma fonte vital de água durante a estação seca. As estiagens mais prolongadas e a diminuição da umidade do solo já impactam a produção agrícola e a capacidade hidrelétrica. Povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais, que dependem dos diferentes ecossistemas do Cerrado, enfrentam o deslocamento e a erosão cultural.

O enfrentamento dessa crise exige ações urgentes. Estudos apontam que o fim da conversão de áreas nativas (incluídas as supressões autorizadas e as ilegais), a restauração de terras degradadas e a adoção de práticas agrícolas sustentáveis poderia liberar recursos expressivos à economia do Brasil, por meio de mercados de carbono e bioindústrias.

Em ano de COP30 no Brasil, é preciso apontar que o destino do Cerrado é um lembrete claro da interconexão entre o clima, a biodiversidade e os meios de subsistência humanos. Sem intervenção imediata e efetiva, sistemas ecológicos fundamentais podem entrar em colapso, desencadeando impactos em cascata em todo país e também na América do Sul.

 

  • Ano ado, as queimadas no Parque Nacional consumiram 3 mil hectares da reserva
    Ano ado, as queimadas no Parque Nacional consumiram 3 mil hectares da reserva Foto: Ed Alves/CB
  • A seca de 2024 foi marcada pelo maior período da história sem chuvas no DF. Ao todo foram 167 dias
    A seca de 2024 foi marcada pelo maior período da história sem chuvas no DF. Ao todo foram 167 dias Foto: Ed Alves/CB
  • O fogo não afeta apenas a vegetação: tem um impacto negativo na sobrevivência dos animais
    O fogo não afeta apenas a vegetação: tem um impacto negativo na sobrevivência dos animais Foto: Ed Alves/CB
postado em 24/05/2025 04:00 / atualizado em 24/05/2025 07:41
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